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Filipe Catto, que lança disco cantando Gal: “Não ter medo ou esperança é ser verdadeiramente livre”

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Créditos: Juliana Robin/Divulgação
Créditos: Juliana Robin/Divulgação

As canções de Gal Costa (1945-2022) embalaram, sem exceção, todas as gerações das últimas seis décadas. Moderna e à frente de qualquer tempo, sua voz passeou por estilos, timbres e uma potente curadoria de compositores que vai de Jards Macalé a Marília Mendonça. O abrupto calar da artista, em novembro de 2022, fez com que os versos de Caetano Veloso em “O Amor” se repetissem por aí.

“Ela é tão bonita / Que na certa / Eles a ressuscitarão”.

Para sempre legal, é certo dizer que a estrela preserva seu brilho agora em discos e turnês que se multiplicam Brasil afora, revisitando um repertório indissociável da história da MPB.

A cantora gaúcha Filipe Catto, ainda que reticente a projetos do gênero, atendeu ao chamado e decidiu realizar um show com o repertório da “verdadeira baiana”. O DJ Zé Pedro, dono do selo Joia Moderna Disco, foi assisti-la e fez com que entendesse, em seguida, a dimensão do que trazia para o palco. Catto tinha nas mãos a necessidade de registrar o momento.

“Acabou virando uma coisa tão profundamente minha, tão literal na minha própria vivência, que me pareceu uma heresia não registrar este projeto, tamanho amor que ele acendeu em mim”, contou, antes de falar com o Papelpop. Foi então que a artista parou as gravações de um disco de inéditas, o primeiro autoral em quase seis anos, a fim de voltar seus esforços para outra gravação, ao vivo.

“Belezas são coisas acesas por dentro”, como foi intitulado, passeia por entre emoções com pose de rockstar, ainda que sem ignorar a sensibilidade das vivências de uma pessoa trans não binária. Esse exercício que confere novas camadas ao todo torna correspondentes as necessidades de amar e ser livre, cravadas no presente e passado.

Nas interpretações de Catto, a música, outra vez, torna-se um espaço sagrado. É necessário pouco mais de meia hora para que os clássicos reapareçam ao lado de escolhas menos óbvias, convidativas a redescobrir não apenas Gal, mas também esta nova versão de si, consciente dos próprios sonhos.

Com uma estética à la PJ Harvey anos 2000, a cantora busca em Gal o espírito da transgressão e, ao mesmo tempo,  um reencontro com a sutileza das palavras. Em entrevista ao Papelpop, Catto apresenta o projeto e trata de dimensionar os muitos magnetismos de sua musa. Abaixo, você lê uma conversa feita por telefone, sem cortes.

***

Papelpop: Essa reunião de canções não me parece exatamente um tributo, e sim uma carta de amor. Uma carta de amor que você escreve pra si mesma.

Filipe Catto: É isso mesmo.

A Gal cantou ao longo de toda sua carreira as histórias de muitas de nós, mulheres e pessoas queer. É possível dimensionar a transgressão que ela representou e que ainda desperta?

A Gal é uma entidade. Ela sintetiza uma coisa muito poderosa sobre a feminilidade e a nossa cultura. Ela é um retrato do feminino sob o prisma da cultura brasileira. Pensando o tipo de roupa que ela usava, a maneira com que ela expressava seu corpo de uma forma extremamente brasileira… Ela tinha essa capacidade de traduzir a nossa cultura de A a Z. O jeito que ela tocava, como cantava, como escolhia o repertório. Mas, não sei se é possível dimensionar, tudo o que foi deixado por ela assume um espaço e uma visualidade muito grandiosa.

Nos encontros que tiveram, o que ela deixou de mais magnético em você?

A Gal tinha uma beleza, uma sensualidade e um jeito muito forte de ser que eram absolutamente naturais. Tu vias que ela não fazia esforço pra ter esse magnetismo, era uma mulher que tinha um olhar muito vivo. Pude perceber o quanto aquela luz dela, aquela beleza, era muito do jeito dela ser. Gal foi extremamente moderna e aberta com as pessoas que chegavam até ela. Trabalhamos de forma íntima com pessoas em comum, cheguei a gravar ao lado de Céu e Maria Gadu os backing vocals de ‘Cuidando de Longe’, parceria dela Marília Mendonça no disco ‘A Pele do Futuro’… e Gal foi uma pessoa sempre muito querida comigo. Muito interessada, muito fofa. E isso não era uma exclusividade, era um jeito de ser com todos ao redor, com a nova geração. Ela foi a artista que mais nos deu coisas, e isso é muito importante não só pelo que há de mais canônico na obra dela, mas também pelos anos mais recentes. Na última década ela foi uma estrela guia. Lamento muito que ela tenha morrido assim, mas fico feliz que ela também tenha lançado trabalhos recentes tão inspiradores.

Que espaço há para a modernidade na obra dela?

Tem gente que é inquieta por natureza, que tem isso dentro de si. É uma parada que não morre. A Gal esteve sempre muito aberta a se jogar em coisas misteriosas. Ela era muito bruxona, tinha uma intuição muito forte na hora de se guiar nos projetos, fazer as parcerias criativas que fazia… Ela estava pronta pra ouvir coisas novas e se emocionar com isso o tempo todo. Uma artista do tamanho e da grandeza dela poderia ter ficado enclausurada em si mesma. Não foi o caso.

“Belezas são coisas acesas por dentro” é um disco de rock, sujo e de muitas verdades. Você considera a Gal uma rockstar?

Totalmente [risos]. Vamos lembrar dela de peito de fora no show ‘O Sorriso do Gato de Alice’ (1994), ou na capa do disco ‘Índia’ (1973). Como cocriadora do movimento Tropicalista, ou fazendo vocais esdrúxulos no primeiro disco. A Gal sempre foi uma artista da transgressão, e ela assume diferentes sonoridades de acordo com a época. Cada fase tem a sua transgressão, seu lugar de romper fronteiras. A Gal passou por diversas décadas e estéticas. Ela foi pro pop dos anos 1980 com ‘Vaca Profana’ quando ninguém esperava. Ela era muito vasta e isso é lindo de ver, observar como ela ainda inspira a gente a não ser mesquinha e ficar num lugarzinho só. Acho que o encanto está em explorar tudo e ser bem louca.

Hoje te vejo muito mais diva em cena do que na turnê ‘O Nascimento de Vênus’. Enquanto artista, em que medida a figura de Gal potencializou essa postura em você?

Só consegui encarar o desafio de cantar Gal Costa porque eu já tava trabalhando com o meu corpo há bastante tempo. Como uma pessoa trans, carrego muitos problemas de autoimagem. Isso é uma coisa que sempre me deixou mal, já tive crises pesadíssimas envolvendo distúrbios alimentares. A minha vida foi marcada por essa guerra contra o meu próprio corpo, e esse processo de estar no palco sempre foi uma grande fogueira. Quando comecei a compreender o meu gênero, na época do disco ‘CATTO’ (2017), dei grandes passos para começar a me expressar. Fui saindo de um espaço de muito mais timidez e pude usar meu corpo com mais direcionamento à assertividade e à segurança, isto é, à medida que fui me entendendo e vivenciando essa identidade. Uma das coisas que botei pra mim mesma é poder viver esse exercício de sair pra dançar. Saio sempre pra trabalhar. Quando vou pra uma festa com DJs, me permito expressar gestos, a minha verdade com o meu corpo. É um processo e foi muito positivo poder subir ao palco cantando essas faixas de Gal, afinal, tudo começou ali. Poder usar esse figurino que é uma coisa muito chique me deixou confortável. Isso pra mim é o maior ganho, quando o artista está confortável em cena, essa postura de diva que tu falou se potencializa. Ela vem de dentro pra fora. Não é uma coisa que tu faz um esforço. Não tinha elaborado ainda, mas agora com a tua pergunta, o próprio título ‘Belezas são coisas acesas por dentro” busca falar sobre essa parada que é verdadeira, interna e transparece.

Em algum momento foi reticente a gravar um disco de tributos?

Sim. Pra fazer, tem que ser muito de verdade, muito fucking de verdade, porque… ninguém precisa de tributo. É muito melhor não fazer do que fazer [risos]. É, fiz a minha mea culpa agora, mas, nesse projeto, as coisas aconteceram sozinhas. Nada foi planejado. Como eu disse, a figura da Gal me inspira muito como pessoa trans e ela é uma grande diva pra todas nós, ela inspira muito e isso faz com que esse trabalho simbolize várias cartas de amor, como você mesmo disse lá atrás. Temos aqui uma carta minha pra ela, outra que direciono pra mim mesma, por tudo que tive que enfrentar pra subir ao palco e sentir o que sinto agora cantando essas músicas. E com certeza, uma terceira carta pra aquelas que são como eu e vivem essa transformação através das minhas loucuras, jogando todas as convenções no lixo. Mas é curioso pensar isso porque o Brasil tem uma tradição desde sempre de fazer tributos. Existe uma cultura de artistas que reverenciam seus pares. Isso já foi feito por milhares de pessoas, temos Gal canta Caymmi, Bethânia canta Roberto, fora os inúmeros shows… eu mesma participei, há poucos meses, de um tributo a Maysa nas companhias de Alice Caymmi e Ayrton Montarroyos. Isso é muito bonito, perceber o que é nosso, sobretudo depois desse desmonte cultural. Quando penso que Tom Jobim, Dorival Caymmi, Leci Brandão, Caetano Veloso e Gal Costa são meus, que fazem parte da minha cultura, penso que é isso o que me fez ser quem sou. Isso me honra e me dá muita alegria. Eu, como artista brasileira, poder partilhar esse repertório. Sempre vamos ter que cantá-los. Tivemos uma amostra de que tudo é muito frágil. Precisamos, sim, reforçar e fortalecer esse repertório.

Por falar nisso… O que difere esse disco cantando Gal do show ‘Catto canta Cássia Eller’, que você apresentou alguns anos atrás?

Com certeza o palco, ele me dá uma liberdade maior. Fiz esse show cantando Cássia Eller como fã, nunca tive vontade de gravar porque aquele trabalho me inspirava estar ali, em cena. Mas, com Gal, cantando aquelas palavras de Jards Macalé, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Bob Dylan, Dori Caymmi, Julio Barreto, Alice Salomão, Jorge Mautner, Ronaldo Bastos, Stevie Wonder… tudo me levou a pensar que ali existiam muitos poetas. Porra, tive a clara consciência de que aquela também era a minha história. Aquelas músicas, aquelas histórias só estavam sendo cantadas por mim porque, de fato, aquela que era eu após a pandemia. Aquela era eu indo pegar um velho navio. Aquela era eu sendo uma tigresa que tem muito ódio no coração e tem dado muito amor. Me vi em cada cena descrita naquelas canções e me senti, finalmente, como uma cantora adulta. Já não sou mais uma garota. Foi inevitável que a gente gravasse e vejo tudo de uma forma autobiográfica, me emociono com frequência quando escuto a mixagem final. É uma maneira de contar a minha história por intermédio da voz dela, e nisso se reforça uma relação muito profunda.

Uma faixa que me chama a atenção nesse percurso é “Joia/Oração da Mãe Menininha”. Que leitura você faz desse lado sagrado que assume hoje a voz de Gal, mas também a figura da própria cantora?

O novo trabalho bebe muito dessa fonte. Esse momento do álbum é uma oração, uma invocação. Faço um ritual de magia em todos os meus espetáculos. Não é algo que seja possível raciocinar, embora eu tenha mais e mais consciência disso. Cada vez mais você participa e conduz uma comunhão. A arte pra mim é a magia em si. Logo, esse momento de ‘Oração da Mãe Menininha’ é quando me conecto com as energias da natureza que trabalham através de nós e trabalhavam muito fortemente com a Gal.

Revisitar essa discografia a fim de construir um repertório foi uma jornada afetiva, e por isso nos vemos diante de canções menos conhecidas do público, se comparadas com grandes sucessos dos anos 1970 e 1980. Como foi mergulhar nessa espécie de lado B?

Pra mim elas não eram bem lado B, e sim músicas importantíssimas. “Jabitacá”, por exemplo, é uma música que quando ouvi pela primeira vez fiquei obcecada. Pensar as ‘Belezas que são coisas acesas por dentro’ é isso, é fazer um recorte do que me emociona. ‘Sem Medo Nem Esperança’ é o que eu sinto, exatamente, nesse momento. Aquilo me pega. Sou muito guiada pelo texto das músicas é o que guia minha escolha de repertório. A letra dessa canção é tudo o que eu mais quero dizer depois de ter lidado com um monte de merda. “Não sou mais tola/não mais me queixo/não tenho medo nem esperança.” Isso é ser verdadeiramente livre. Temos que sonhar, mas ao mesmo tempo ter esperança de o mundo mudar pra, só então, eu ser feliz? Pra eu ser 100% maravilhosa? Vou esperar o mundo me aceitar e dizer meu pronome corretamente pra que eu tenha uma vida decente? Não vou esperar. Vou fazer tudo e viver agora. Inclusive, não espero nada da sociedade. A sociedade é uma coisa que eu sempre tive que manobrar, desde que eu nasci. Não quero ser compreendida por pessoas, xingamentos homofóbicos ou transfóbicos não me ofendem. Me dão raiva, mas é uma coisa que diz tão mais sobre a burrice instaurada no mundo do que sobre quem eu sou e o que eu posso ser… Vou arrasar agora. ‘Vaca Profana’, outro exemplo, reflete essa parada de ser uma garota completamente fora do padrão, que é bruxona, muito chique. A gente só nasce assim.

Ser bruxona não é uma escolha.

Sim. A gente tem que ouvir o nosso coração, e eu aprendi muito nos últimos 15 anos de trabalho. Serena Assunção e Marina Lima, por exemplo, são pessoas próximas de mim que foram e são muito espiritualizadas, que tem uma conexão sagrada com a música. Isso vem do coração. Por isso que também não bato mais cabeça com os processos, a gente precisa se entregar e fazer, sem questionar.

A Marina Sena foi muito criticada pelo show que fez também em homenagem à Gal, durante o festival The Town, em São Paulo. Com tantas homenagens, criou-se uma espécie de fetiche em torno da busca por uma nova Gal, uma nova Rita Lee… Como você observa isso?

Eu acho uma bobagem sem fim colocar esses títulos nas pessoas. Fazer uma homenagem não significa que tu queiras o espaço da outra pessoa. É bonito, mas colocar o outro como o novo, a nova… não. Aceitar isso também, porque acontece, é bem trash, muito mórbido. As pessoas passaram a minha carreira inteira tentando dizer que eu era ‘a nova isso’, ‘a nova aquilo’ e, sinceramente, entrava por um ouvido e saía pelo outro. O problema é que quando tu compra essa ideia e se envaidece a partir disso, aí tu embarca em uma despersonalização. Por essa razão acho que a gente tem que ir cada vez mais fundo na psicanálise, pra descobrir o que podemos descobrir de melhor. Eu quero ser a nova Filipe Catto e, aliás, sou a nova Filipe Catto. Não a nova ‘fulana de tal’. Não pretendo, inclusive, estar no mesmo espaço de cantora como Gal Costa, eu não estou, mas isso não significa que eu não possa mergulhar nessas canções com todo o meu coração. Quero realmente oferecer isso de uma forma muito despretensiosa. Sei que a galera é preguiçosa, por isso é mais fácil dizer ‘Fulano é a nova Gal’. É preguiça de pensar, de contextualizar. Tem gente que quer mesmo o espaço do outro, é uma coisa confortável, fácil e rápida de se explicar. E aceitar é mórbido.

Que lugar o intérprete tem hoje na música popular brasileira?

O intérprete na música brasileira continua tendo um papel fundamental, é a cola que une várias outras coisas, que concatena o compositor, o produtor, a banda, o vídeo. A pessoa que canta é a pessoa que puxa o barco, geralmente. É para onde se aponta. Mas eu… sempre me vi muito como intérprete, Hoje já não me sinto mais nesse lugar, me enxergo muito mais como artista, não sei mais separar a compositora, da produtora, da intérprete e da pessoa que dirige os shows. O meu disco novo, de inéditas, sai em 2024 e é completamente formado por músicas minhas, que estou escrevendo, tirando sons, imersa desde 2018. No começo do ano, tive muita dificuldade de trabalhar nessas faixas e me senti triste. Gosto de trabalhar bem. Sinto que estou reconstruindo a minha vida e o ‘Gal’ foi uma experiência louca, que me atravessou e me devolveu essa felicidade de seguir, de sair e ver as coisas de fora antes de voltar e focar. Sei que sempre vou ser intérprete, mas agora, mais que nunca, vou ser das minhas músicas.

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