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Quem é Bala Desejo, quarteto brasileiríssimo que acaba de lançar disco

música
Fotos: Lucas Vaz/Divulgação
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Sons confusos do que parece ser um bar na hora da “saideira” confundem noite e dia. Essa sinestesia que envolve onomatopeias, diálogos e buzinas compõe “Embala Pra Viagem”, primeira faixa do disco “Sim, Sim, Sim” (Coala Records), lançado pelo quarteto Bala Desejo em dupla estreia que acontece a partir desta quinta-feira (27).

Do começo ao fim o projeto grita camadas. Serão dois lados, A e B, como um disco de vinil. Ainda sobre as vozes do entra e sai, ouve-se o auto-falante de uma kombi que convida os transeuntes a prestar atenção nos detalhes de uma espécie de poesia urbana. Quem fala é o grupo de amigos Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra, que se unem pra criar um som que, ao mesmo tempo em que não se atém a nenhuma referência específica, ao acena para uma série de rimas ricas e os 25% de bagagem de cada um.

A ideia inicial não era bem lançar um disco, não pelo menos a princípio. Aconteceria antes um show no Coala Festival, evento paulistano que celebra a música popular brasileira de diferentes gerações. Em um segundo momento, acabou sendo adiado em virtude da pandemia. Por que, então, não seguir a lógica inversa?, foi o que propôs o produtor Marcus Preto (Céu, Gal Costa, Emicida).

Em uma espécie de residência que mais se associa à imersão, Dora, Julia, Lucas e Zé, quatro amigos artistas e em ascensão, mergulharam de vez no imaginário criativo.

Nesta entrevista, feita por e-mail com Zé Ibarra, ele explica as peculiaridades estéticas e sonoras do Bala Desejo.  Guarde bem este nome. O “recarnaval” está à solta.

Fiquei curioso sobre como chegaram à escolha do nome “Bala Desejo”.

Zé Ibarra: No primeiro dia em que paramos para compor, logo quando entendemos que íamos ter que fazer um disco em poucos meses, surgiram umas ideias, e numa delas, numa brincadeira, surgiu o nome Bala Desejo, no verso “prova do meu beijo, baba no meu queixo, bala desejo”. Tempos depois lembramos dessa parte final e achamos que tinha a ver com os temas que acabaram sendo abordados no disco. A ambiguidade da palavra bala unida a palavra desejo, a bala que se come, a bala que é projétil, que atravessa, mas que carrega o desejo junto dela. Gostamos da ideia da bala como um vetor do desejo, do tesão e do sim.

O Lado A de “Sim, Sim, Sim” abre com uma introdução bastante visual em que a protagonista é uma kombi, que percorre as cidades fazendo um chamado. Em alguns momentos temos, inclusive, a impressão de estarmos envoltos por uma atmosfera teatral. Existe alguma metáfora implícita nisso? O que quiseram comunicar?

Havia uma vontade nossa que a linguagem do disco ultrapassasse a da música, que abraçasse novos terrenos. Quando pensávamos qual seria a tônica conceitual que ia comandar o nosso caminho vimos que tudo deveria pairar sobre a questão do corpo. No começo, tínhamos a ideia de fazer músicas que tocassem no sublime e no belo, e por esse viés existissem no mundo, mas no meio de uma pandemia não tinha como deixarmos de lado a questão do corpo, do toque, da dança e do gozo. Nesse mesmo momento vimos o documentário “A Farra do Circo” (2014) e ficamos muito inspirados por toda a história do Circo Voador e de toda aquela mistura músico-teatral. A Julia (Mestre) já vem do Teatro também, então foi natural a incorporação da dimensão cênica em todo o processo, desde as letras, aos shows e até no próprio disco. Queríamos começar o álbum sem música, numa cena mundana dum dia de carnaval do Rio na qual a charanga do Bala chegaria carregando nossa música e convocando todos ao Recarnaval. A dimensão metafórica disso está na ideia toda do disco, da união, da multiplicidade. Queríamos fazer um álbum quase anti-individualista, um álbum a mil mãos, e a Kombi do Bala simboliza essa dinâmica: uma kombi itinerante que passa e carrega todo mundo junto, formando a grande sopa do Bala.

São quatro integrantes e o projeto comporta individualidades, amizades e diferentes forças criativas. Tudo é único e entrelaçado ao mesmo tempo… Como alcançar harmonia em estúdio? Sentem que a experiência de morarem juntos foi fundamental pra que houvesse essa conexão?

A gente brinca que existe o Bala Desejo e o Vala Desejo, rs, isso já explica um pouco da sua pergunta. Nunca é fácil congregar opiniões, individualidades e vontades. Mesmo sendo muito amigos e tendo vivido tanto tempo juntos, cada um de nós tem um jeito de ver as coisas, mas sempre a ideia do Bala foi mergulhar profundamente em tudo o que pudesse ser tido como intenso e real mesmo que isso custasse. Nos jogamos de cabeça nessa, fomos morar juntos, às vezes até no mesmo quarto durante alguns períodos e fizemos uma escolha muito específica que talvez nunca mais façamos, rs: não colocamos, em nenhuma parte do processo, uma voz de autoridade, então imagina só, rsrs. Acho que com certeza isso foi uma das coisas mais loucas do Bala Desejo, mas, no fim das contas, foi também umas das coisas mais incríveis porque para uma ideia ir pra frente, qualquer que fosse, ela tinha que ir para a ágora antes e ser debatida mil vezes. Cansativo, mas interessante. Continuamos amigos depois, então deu certo :)

Gostei muito de “Dourado Dourado”, que se encerra com uma salsa. Há reviravoltas inesperadas ao longo da música, que segue um caminho pouco óbvio. Como funcionou a pesquisa sonora pra esse trabalho? Ouviam algum disco paralelo às gravações?

Não houve uma pesquisa sonora para o disco especificamente. Ouvimos muitas coisas em comum e somos todos muito ecléticos e abertos ao não limite entre os gêneros ou quaisquer delimitações nesse sentido. Tudo foi muito natural. Tem uma coisa de tentar ouvir a canção, toda canção pede para ser de um jeito, é só ouvir direitinho que ela nos leva. As canções iam surgindo e íamos fazendo um exercício imaginativo de tentar encontrar o caminho perfeito para cada música. O disco acabou tendo uma variedade de estilos que nunca pretendemos racionalmente que ele tivesse, mas ficamos muito felizes com o resultado.

Vocês também apresentam uma poesia musicada de Federico García Lorca. Por que a escolha tão específica desse autor?

O que aconteceu foi que a Dora, que tem um apreço especial por músicas de ninar, um dia nos surgiu com essa canção e, achando ela linda, incorporamos ao nosso repertório da escada. É engraçado porque ela, antes das outras composições, sempre foi unanimidade entre nós de que deveria compor o disco, muito pela questão de ser em espanhol e a nossa vontade de dialogar com a América Latina como um todo. A Julia e o Zé são de famílias com ascendência espanhola e chilena e as Nañas sempre habitaram o imaginário deles, então tava tudo dentro. Acabou que ela entrou para fechar o lado A, como um convite para dormir feito ao ouvinte.

Não é exagero dizer que a música popular brasileira vive um momento pulsante, de renovação. Vêem isso como um reflexo das repressões, do claustro ao qual fomos obrigados a viver nos últimos anos?

Sim, a música brasileira vem vivendo em todas as suas áreas um momento de vibração criativa, mas sobre a relação com a repressão e a pandemia: claro que esses fatores contribuem de alguma forma para uma concisão, para uma potencialização temática e da vontade de fazer arte, mas atribuir tudo isso de maneira leviana à pandemia e à repressão não é justo porque ao mesmo tempo que para alguns pode ter sido motor, para outros foi e tem sido só estagnação e falta de oportunidade.

As faixas do Lado A carregam uma estética que remete, justamente, aos grandes discos de banda, revelando uma grande preocupação com a singularidade de cada instrumento. Quiseram fazer um contraponto à era dos beats? Ou foi uma decisão orgânica?

Não, não foi um contraponto, até porque não existe uma postura de cisão entre esses dois jeitos de fazer música entre nós, são só dois jeitos. Por acaso, no Bala, por toda a questão da pandemia e pela nossa vontade de fazer algo que fosse o mais visceral possível, fizemos dessa forma, com músicos tocando ao vivo instrumentos acústicos. Foi uma escolha quase conceitual de gravarmos dessa forma. Nos enfiamos numa casa em Santa Teresa durante 20 dias, juntos com os músicos, a equipe de filmagem, todo mundo. De novo, a sopa do Bala se tornando realidade.

Houve (e arrisco dizer, ainda há) muita expectativa em relação aos nomes de todos vocês, considerados prodígios da MPB contemporânea. Nesse sentido, o que o lançamento de “Sim, Sim, Sim” significa para cada um? Sentem que estão cravando o que pode ser este aguardado novo ciclo?

Acho que sim. Estamos muito felizes em estar lançando um trabalho no qual acreditamos tanto como o “Sim Sim Sim”. Esse álbum foi a realização de muitos sonhos entre nós, tudo foi feito com o maior cuidado da maneira que tem que ser feita. Colocamos nele tudo o que acreditamos, melodia, letra, harmonia, conceito, narrativa, parte visual. É um álbum em que tentamos dar conta da maior quantidade de aspectos que pudemos imaginar e, no fim das contas, ficamos bem orgulhosos com o resultado. As expectativas são altas, e o pé no chão é fundamental para não haver frustrações, mas demos tudo nesse projeto e a sensação de dever cumprido é total e absoluta.

Vocês mencionam no texto de apresentação a busca por uma saída, pelo futuro viável, por um “recarnaval”. Encontrado esse portal… o que esperam que haja do outro lado?

Difícil essa pergunta, mas achamos que esse portal nunca se encontra, se busca. É um tentar contínuo. A ideia toda é mais sobre descobrir e tentar cultivar os motores para tal busca, é mais sobre o caminho. O recarnaval é antes o caminho do que a chegada. Uma vez em estado de recarnaval, que não é, obviamente, só a festa ou um desbunde generalizado, é muito mais que isso, estaremos melhor posicionados para caminhar correto.

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O lado B, vale lembrar, será lançado em 16 de fevereiro. As canções também ganharão publicação em LP em momento oportuno. Ouça mais do Bala Desejo nas plataformas de streaming clicando na foto abaixo.

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