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música

Em 1980, David Bowie fazia as pazes com o pop ao lançar “Scary Monsters”

Depois de cruzar uma ponte com destino ao underground e fazer três lançamentos que deixaram o público um tanto receoso quanto ao futuro de sua carreira, David Bowie viu que era hora de se reconectar com o pop. Em setembro de 1980, 7 meses após entrar em estúdio, o camaleão lançou o LP “Scary Monsters… and Super Creeps”. Como bem viria a definir o biógrafo David Buckley, seria este o responsável pelo “equilíbrio perfeito” entre sua criatividade e o sucesso mainstream.

Assumindo a figura de um Pierrot moderno, que estaria inclusive na capa do álbum, Bowie apresentou canções com letras elaboradas e instrumentos tocados de forma mais calculada. Os fluxos de improvisação eram quase inexistentes, visto que a ideia era seguir na contramão dos discos “Low”, “Heroes” e “Lodger”. Foram eles que marcaram sua passagem por Berlim, no fim dos anos 1970.

A estratégia deu certo e manteve a média de notas altas que o cantor vinha recebendo da crítica especializada. O primeiro lugar nas paradas de sucesso norte-americanas – algo que não acontecia desde “Diamond Dogs” (1974) – também foi alcançado.

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De fato, era uma fase feliz e propícia: o cantor tinha acabado de se divorciar da primeira esposa, Angela Barnett, e a Justiça havia lhe concedido a guarda do filho Duncan. Cheio de esperança e positividade, tanto pelas circunstâncias pessoais, quanto pela chegada da nova década, Bowie embarcou em mais uma fase de reinvenção.

As descobertas iriam se mostrar até mesmo no que diz respeito ao espaço geográfico. Após ter experimentado anos na Europa oriental, à beira de um colapso, Bowie decidiu partir rumo a Nova York, o berço do capitalismo. Não viria só: pela última vez entrava em estúdio com Tony Visconti (produção), Carlos Alomar (guitarra) e Dennis Davis (bateria), sua principal banda desde os anos 1970. Também seria contratado o pianista Roy Bittan, famoso por compor a banda de Bruce Springsteen.

Na autobiografia “Tony Visconti: Bowie, Bolan and the Brooklyn Boy”, lançada em 2007, o produtor relembra os ânimos do período que antecedeu as gravações. “Normalmente eu teria dito, ‘Ok, vamos apenas arregaçar as mangas e começar o lento processo de criação de algo do nada’. Mas desta vez eu estava furioso”.

A safra rendeu canções antológicas como “Ashes to Ashes” e “Fashion”. A primeira delas, escolhida para fazer as honras, trazia uma pegada moderna, aliada a conceitos minimalistas que valorizam linhas de baixo e o som da guitarra sintetizada. Acenando pro passado, da mesma forma com que anos antes havia matado o lendário Ziggy Stardust, Bowie ousa na letra. Agora ele estava obstinado a destruir a reputação de outro personagem: Major Tom.

Em uma das estrofes, o astronauta fictício que aparece pela primeira vez em “Space Oddity” (1969) tem um segredo íntimo revelado.

“Sabemos que Major Tom é um drogado
Estendido, chapado no alto paraíso
Atingindo sua maior decadência”.

O clipe, cheio de efeitos visuais, foi considerado o mais caro da história até então.

Mas há também pérolas menos revisitadas, como “Kingdom Come” e “It’s No Game (Pt. 1)”, um rock potente introduzido por uma voz jovem, feminina, que dita palavras em japonês. Conforme caminha, o disco vai se mostrando mais atmosférico, a fim de lembrar o ouvinte a todo momento que a frenética Nova York é seu pano de fundo. A noite na metrópole daqueles tempos era alucinada, o vírus do amor ainda não existia e as referências borbulhavam em um caldeirão de jovens artistas.

“Scary Monsters” bebe nessa fonte até se fartar e acaba sendo arte inclusive na hora de mandar um shade. Os destinatários da mensagem ácida de Bowie em “Teenage Wildlife” eram artistas da chamada new wave, entre eles Gary Numan, a quem foi comparado incontáveis vezes. No refrão, por cima de uma base que se assemelha muito à de “Heroes”, ele canta:

“Você é um magnata de nariz quebrado
Um dos garotos da new wave
A mesma coisa velha numa novíssima forma
Vem deslizando até a visão
Feio como um milionário adolescente
Fingindo que o mundo é dos garotos prodígios”

É “Fashion”, entretanto, que o coloca no panteão dos grandes narradores ao falar sobre a determinação e as incertezas que tomam conta dos que trabalham com a indústria da moda. Nas palavras de Buckley, Bowie “cutucou de forma divertida a banalidade das pistas de dança e os fascistas do estilo”. Em 2018, a australiana Kylie Minogue quis fazer um mash-up da faixa, unindo-a ao sucesso “Slow”.

Quem foi ao show da artista no Brasil, no Festival GRLS!, viu de perto o impacto dessa mistura.

“‘Scary Monsters’ sempre foi pra mim um tipo de expurgo”, disse o cantor, em 1990, durante uma entrevista à revista Musican. “Era eu erradicando sentimentos que me incomodavam. Você tem que acomodar seu passado dentro de uma persona. Entender por que passou por algo. Não dá pra simplesmente ignorar as coisas ou colocá-las pra fora da mente e fingir que não aconteceram ou dizer apenas ‘Oh, eu era diferente antes”.

Há 20 anos, quando se apresentou no Festival Glastonbury como headliner, David Bowie celebrava um outro ciclo desse trabalho. As faixas escolhidas tinham a metade da idade que tem hoje, mas nem por isso foram privadas de uma recepção calorosa. Se estivesse vivo e em tempos de palco, o ícone provavelmente continuaria surpreendendo ao incluí-las no set, noite após noite. Se ficaria surpreso ou não, não dá pra saber. Mas mesmo com 40 anos de estrada e o título de veterano ainda deve ser difícil encarar um monstro, entre eles o da fama.

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