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música

Boogarins abre baú de recordações em “Manchaca Vol.1”, disco que acaba de sair

Nascer e crescer em meio à cena de indie de Goiânia significa ter ido a vários shows da Boogarins. Em compensação, apesar de fazer parte da memória afetiva de uma geração que não raro frequentava inferninhos e pubs, o quarteto não criou raízes no sertão do cerrado.

Sete anos se passaram desde que os amigos Benke Ferraz, Dinho AlmeidaRaphael Vaz e Ynaiã Benthroldo se uniram pela primeira vez. Tocavam de outro jeito, tinham pretensões humildes e não imaginavam que a certa altura seriam considerados referência no chamado rock à brasileira.

Aliás, tendo a compreensão de que o brasileiro é um povo misto, que nasceu de uma profusão de culturas e lugares, acaba não fazendo diferença também se o tamanho palco é imponente ou não.

Do Primavera Sound ao Lollapalooza Brasil, do Rock in Rio Lisboa ao Coachella, para a Boogarins o importante mesmo é fazer música. Pode ser até em casas menores, como o Cafofo Estúdio e o já extinto Complexo.

“Tentamos lembrar a galera como é legal juntar amigos pra fazer um som, o que é algo fora de moda hoje em dia”, diz Benke Ferraz, referindo-se à cultura das bandas e o que chamou de “pasteurização dos conteúdos” proposta pela indústria mainstream.

Vivendo o sonho de ter um grupo independente, ele partiu rumo ao Texas, onde encontrou ao lado dos amigos entre um show e outro uma casa-estúdio. O endereço fez brotar uma série de canções que entre demos e jams deram origem aos álbuns “Lá Vem a Morte” e “Sombrou Dúvida”.

Pra matar a saudade dos shows e dissecar frente aos olhos do público o próprio processo criativo, a Boogarins decidiu abrir o próprio baú de recordações e lançar “Manchaca – Volume 1”, álbum que reúne raridades.

Passeando entre o pop e o underground, a compilação entrega faixas inéditas que vão de demos a outtakes, bem como interpretações que antes só haviam ganhado a luz por meio de vozes como as de Ava Rocha (“João Três Filhos”) e Céu (“Make Sure Your Head is Above”).

Ao Papelpop, Benke Ferraz falou sobre a estreia, que chega acompanhada de um documentário. No filme, ele afirma que este “é o melhor disco do Boogarins até o momento”. Eu quis saber o por quê.

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Papelpop: Vocês convidam as pessoas a dar um passeio por novas estéticas, novos experimentos e “Manchaca” é um projeto mais cru. A impressão que tive é a de que vocês resolveram abrir as portas de um laboratório…

Benke Ferraz: Com certeza. É a tônica desse trabalho, até pra gente poder realmente exorcizar uma carga de produções que vem desde 2016. Foi quando Ynaiã [Benthroldo baterista] entrou na banda, quando começamos a gravar nos Estados Unidos o LP “Lá Vem a Morte” e depois voltamos pra fazer “Sombrou Dúvida”. “Manchaca” é o material sobrou desses últimos 2 discos que lançamos. No fim do ano passado íamos soltar de modo não oficial, só pra galera baixar, mas percebemos que isso foi tomando outro significado uma vez que você observa importância de uma caminhada. No fim, quando entramos na década já tínhamos uma cabeça de ir pra um estúdio sem mexer nessas músicas, vamos começar algo do zero. Começar a fazer um som que seja do momento. A gente sempre produziu músicas por muito tempo, ideias ficam ali guardadas… O que disco que chega nesta sexta caiu como uma luva, ainda mais no contexto da pandemia. Optamos por fazer a entrega disso em 2 volumes pra não ter nada guardado e assim começar uma nova era.

Sempre se comenta muito a respeito do alcance da Boogarins na mídia nacional e internacional. Tem The New York Times, Guardian, Pitchfork falando de vocês… Bate uma expectativa em relação ao que a imprensa vai dizer às vésperas de uma estreia? Ou já se acostumaram?

Eu acho que agora posso dizer que já. Se formos tratar “Manchaca” como um disco de estúdio, este é o nosso quinto em 7 anos de banda. Acho que é preciso pensar e driblar um pouco as nomenclaturas, chamar esses discos como uma compilação e dar esse caráter, como você mesmo disse, mais cru, de tentar abrir os processos pra galera entender realmente por que os discos são assim, o que ficou de fora porque a gente pensou que ia usar em outro momento, o que queríamos de fato… estamos em uma posição mais segura, até por conta da realidade do mundo. É complicado que uma matéria, a validação de alguém represente algo pra você em uma situação em que os artistas mal conseguem capitalizar em cima da própria música. Você acaba tendo que vender sua imagem, tem que estar jogando pesado nas redes, pensando em números muito mais do que em arte. Estamos focados nisso e tentando ver o que as pessoas que tem ouvidos abertos tem a dizer sobre esse materiais, pensando no bem e no mal. Tem coisa ali que poderia estar em um disco como single, ao mesmo tempo em que tem faixas muito experimentais, ruidosas pra ouvidos criteriosos em relação ao que vem a ser ‘musica pop’. Estamos abertos a tudo isso porque tentamos construir algo que é nosso mesmo e ao mesmo tempo que passeamos por estéticas, buscamos também ir ao encontro do desconhecido. Mesmo sendo um disco mais cru, que propõe abrir as portas de um processo criativo, nada está aquém de qualquer material. Queremos que o público saboreie esse momento porque a galera pira tanto em momentos despretensiosos como quanto se depara com algo bem produzido, que demoramos 2 anos pra fazer. Tem gravações de celular, temas que Dinho fez pra mandar pra Céu, que era pra ser uma participação da Ava Rocha e acabou sendo apenas dela, músicas que não usamos. Tem um pouco de tudo.

Você cita a relação com os fãs e penso sempre em como a banda se diferencia de outras por nutrir de forma orgânica essa proximidade com quem segue o seu trabalho. Vocês tem até mesmo um grupo com geral no WhatsApp… 

Sim [risos], é um jeito de tentar se manter próximo de quem realmente dá suporte e faz a coisa acontecer. Uma banda como a nossa não toca nas rádios, não tem sucessos virais, mas ainda assim se mantém e vive de música desde sempre. Em um período como a pandemia em que nem se pode fazer shows… é algo pra se comemorar. É também uma coisa que dá certa noção pras pessoas, pros novos artistas. O pequeno sucesso, aquele que não se apoia em números astronômicos, é também um sucesso que as pessoas devem buscar, devem se espelhar. É uma coisa que retribui e importa pra muita gente. Sobre as nossas interações com a galera, servem pra mostrar ainda que não somos só a banda que mais faz shows no exterior do que aqui, ou a banda que tá estourada lá fora. Esses conceitos são muito prejudiciais pra construção de uma cultura brasileira, pra afirmação de uma cultura pop, experimental, eletrônica. O mais legal, acho, é poder mostrar que isso é tão nosso quanto deles.

“Manchaca” também entrega um documentário que mostra os bastidores da criação. A primeira fala é sua, é bem forte inclusive, porque logo de cara você diz “É o melhor disco do Boogarins até o momento”. Por quê?

Esse documentário é engraçado porque foi feito num momento do processo em que o “Sombrou Dúvida” (2019) estava pronto há mais de um ano, embora ainda estivesse guardado, e a gente tava com todo esse material do “Manchaca” a ser finalizado. Lógico que existe nas afirmações de introdução um tom de piada, mas a minha sensação é essa, de fato. É de pensar ‘Caramba, o material extra é melhor’, enquanto lançamos outros materiais que envolveram mais complexidade em termos de campanhas e videoclipes… Isso diz muito respeito ao que são as ideias do Boogarins e de como vamos assimilando e ressignificando as coisas pra realmente dar graça a elas, dar vazão às ideias. Não tem nenhuma ideia oficial ou menos oficial. Todas tratamos com o mesmo carinho e vamos tentando aparar arestas pra ficar do jeito que idealizamos. Não quer dizer que vamos lutar por um perfeccionismo sempre ou querer improvisar um som maluco, com ruídos. É simplesmente abraçar o que a música dá e o momento pede. Pra mim, é o melhor porque tenho a sensação de que “Lá Vem a Morte” e “Sombrou Dúvida” precisavam de uma conclusão. Gosto muito desses trabalhos, tenho muito orgulho, mas falta um entendimento do público e da imprensa sobre todo o processo, sobre a importância de se ter exemplos de jovens que saem do interior do Brasil e vão pros EUA sendo bancados por uma gravadora. Não somos filhos de ninguém, nem temos alguém que passou uma receita. A história de ser a banda brasileira que faz carreira fora não teve um impacto como as pessoas precisam ter pra assimilar e consumir a música, o impacto da bandeira é muito maior do que o processo. Estamos aqui pra oferecer essa visão pra galera que talvez não queira só consumir influencers, mas “música” também. São processos que podem inspirar, empoderar alguém ao ponto de se começar a criar a própria arte. O que representamos enquanto banda é a intersecção entre o que é viável e o que é mais legal de se fazer. Tentamos lembrar a galera como é legal juntar amigos pra fazer um som, porque isso é algo fora de moda hoje em dia.

No doc também é possível ver pessoas de várias partes do mundo comentando o trabalho de vocês. O que há de mais legal nessa coisa de conviver com dois mercados, o gringo e o brasileiro?

Dar valor às duas coisas. Foi algo que a experiência gringa nos proporcionou. Em 2014, quando fizemos mais de 100 shows fora do Brasil, não fizemos apenas shows esgotados ou em grandes casas. Tem gente que viu o primeiro show, que voltou depois, que foi ficando, que hoje sempre compra vinil… Assim se cria uma conexão. A internet, antes desse lance de viralizar e lançar modinhas que estão ligadas ao alcance, funcionava de maneira inversa onde você ter o seu grupinho e conseguir ter contato com aquelas poucas pessoas com as quais você se identificava era o rolê. Em 2013, mandávamos “As plantas que curam” [EP de estreia] pra sites que poderiam ter uma identificação com aquele som. Também tinha uma galera que falava de música psicodélica gringa, mais atual. Fomos percebendo que o grande mérito nosso, de um jeito ou de outro, é conseguir se situar bem, se adaptar. Você vê que tem uma linguagem e uma questão estética que demandam paciência e sabedoria pra não se frustrar com o imediatismo também, que a música lançada naquele ano não tem que ser o hit do ano. Pode ser algo que muitas vezes não vai estourar, mas só cresce daqui pra frente. Tem uma vida inteira pra ela seguir circulando e por fim estar no imaginário de pessoas, da crítica, das produções que vão vir, de novos artistas. Estamos mirando mais na coisa atemporal do que necessariamente nos problemas, ou o que há de de bom e de ruim nos dois mercados. Fazemos musicas pras pessoas, pro povo, pro povo de todos os lugares acima de qualquer coisa. Não queremos nos pautar em padrões e estruturas que, por mais que sejam melhores em termos de equipamentos… sabemos que pra algo ser excelente em vários lugares do mundo a coisa tem que estar ruim aqui no Sul, na América.

Eu sou muito fã da Patti Smith e uma coisa que curto no trabalho dela é o fato de que a  banda se reúne no camarim minutos antes do show pra definir a setlist. Isso é muito especial porque acaba sendo sempre uma surpresa pros fãs… A Boogarins também têm esse hábito. O que o lance dos improvisos, dos experimentos, mais agrega? Ajudou a adquirir maturidade?

Eu acho que isso faz a gente ficar muito mais atento ao que é sonoro, o que é a música, o que reverbera no público, mas também saber lidar com as decisões em tempo real, uma coisa que nesses tempos nossos de superprodução, de tudo ter que ser um retrato do dia a dia do artista, uma representação nas redes sociais, acaba tirando uma naturalidade. Pra gente, sempre foi mais confortável ser espontâneo. Minha personalidade não é tanto assim, mas o Dinho, nosso frontman, é uma figura muito anti-heroica, anti-ídolo, por assim dizer. Ele termina o show e vai pra mesinha do merch, tem a maior paciência com todos. Tem gente que te trata como uma figura de outro mundo e eu acho que a principal função dele é quebrar esse tipo de pretensão, de ideia em que tudo tem que ser arquitetado. Uma vez que se vai na contramão você acaba sendo muito passível ao erro, ao fracasso, e as coisas tomam uma forma X. Esse desafio, essa expectativa de deixar algo mais solto, faz a gente até se entender em situações especiais. A plateia te vendo, esperando algo, a gente pode não saber como lidar com isso, certo? Se arrebenta uma corda, se estraga um amplificador, se cai algo na bateria… deixamos as coisas sempre muito abertas pra poder sermos donos do momento. A galera da equipe tá ligada nisso, várias vezes o Rollinos, nosso projetor, diz ‘Po, me enganaram’. [risos] É legal essa falta de hierarquia, não ter setlist, te exime de cobrar e apontar dedos para o outro.

Vejo um movimento linear no rock em que algum momento passeando as bandas e artistas acabam pendendo pra uma vertente mais pop. Vocês seguem na contramão [o som da Boogarins não se assemelha a nada do que se ouve por aí]. Vocês têm essa pretensão, já chegaram a pensar nisso, na possibilidade de soar mais radiofônico?

Olha, acho que toda essa série que originou “Manchaca” foi de um jeito ou de outro a gente caminhando pra esse lado mais pop, ainda que um pop da nossa cabeça. Na verdade, é muito mais sobre tentar atingir uma excelência de sonoridade e cito como exemplo o próprio “La Vem a Morte”, onde houve a introdução do sintetizador no baixo. Foi isso o que nos deu ‘Foi Mal’, uma das músicas que mais reverbera no público, mesmo sem ter saído em playlists do Spotify, sem ter clipe. Acontece naturalmente, pelos beats, pela produção, talvez. É uma música sem refrão, com voz enterrada em reverbs, e exemplifica bem isso de a gente estar sempre tentando fazer um som profundo pra galera que quer escutar música. É muito normal pra gente que é do interior chegar em um bar de uma cidadezinha de Goiás e dar de cara com alguém tomando cerveja e ouvindo Pink Floyd. Quando falamos de pop, não podemos pensar só no eletrônico, na dita música ‘pop mainstream’. Existe uma abrangência nisso, o próprio “Sombrou Dúvida” tem esse lado… “Dislexia ou Transe”, uma das faixas desse álbum, se pauta na viola caipira e enquanto produtor e mixador tenho tentado ir aparando arestas, perdendo essa primeira observação sobre um som de modo imparcial. É algo que está sempre no nosso radar e posso dizer que no “Manchaca” tem momentos que a gente tá explorando vertentes mais pop do que nunca. “Cães do Ódio” tem um rock mais de rua que me deixa muito orgulhoso, um gancho repetitivo, batidas que guiam a música, guitarras que aparecem com mais detalhes. São coisas que remetem ao trap. “Aquele Som”, música que abre o disco, já é uma coisa mais ‘Beatlemaniaca’, com regrão que toca com palminhas. A gente escuta entre a si e dá risada. O fato de não termos pudor de se limitar a nomenclaturas faz a gente acabar misturando sons e referências de um jeito que representa coisas óbvias pra gente. Talvez vá precisar de 5, 10 anos pra uma outra galera conseguir entender isso e observar que aquilo é pop também.

Vocês fizeram uma live recentemente, primeiro e único show do semestre. Isso me lembrou de um show aqui em Goiânia que a banda fez chamado “Sessão de cura e libertação”. É um formato que imagino hoje como sendo adaptado pra uma transmissão online, com instalações etc… 

É verdade [risos] Com certeza. Quando nos encontramos pra fazer a live no mês passado, com a banda completa, a ideia era fazer um show da banda em si. Com ‘Sessão de Cura e Libertação’ a gente chegou a fazer sessão em São Paulo, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), chamando até mesmo Edgar pra dar um tom futurista, tocando de cara limpa e sem máscaras, tem toda uma coisa especial. Estamos sempre abertos pra tudo, porque como digo, nosso trabalho acaba sendo sobre os momentos e as possibilidades, mais do que simplesmente tocar as canções.

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