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Artista já havia se lançado como escritora em 2013 (Foto: Divulgação/Rafael Spinola)
Foto: Divulgação/Rafael Spinola
música

Entrevista: Celeste Moreau Antunes fala sobre álbum de estreia, MPB e cultura popular

Autora de canções ora densas, ora serenas, a cantora e escritora Celeste Moreau Antunes lança nesta quarta-feira (28) o álbum “Rio Manso vol.1”. A obra, fruto de uma parceria com o compositor e arranjador João Marcondes, se apoia em uma vulnerável combinação instrumental, oriunda de seu estudo a respeito das distintas formas líricas e sonoras.

Neste conjunto de melodias, ela oferece além de canções autorais, novos contornos a clássicos já eternizados no imaginário popular. De uma estética que sugere a princípio vulnerabilidade, também convoca um coral de mulheres para reforçar uma estética que faz do minimalismo a porta de entrada para seu próprio macrocosmo.

Nesta entrevista, Celeste, que é filha do cantor Arnaldo Antunes, apresenta seu debut e fala sobre a relação que tem com o cancioneiro popular brasileiro. A artista também comenta o movimento de “sucessão” da dita “majestosa família da música”, que tem transmitido seu legado nos últimos anos a jovens nomes como Gilsons e Tom Veloso. “É possível transformar essa responsabilidade maior em privilégio”, diz.

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Papelpop: Era um desejo antigo trabalhar com música ou você enxergava isso como uma atividade “extracurricular”, que não dava merecia tanta atenção?

CELESTE MOREAU ANTUNES: Bem, trabalhar com música era um desejo antigo no sentido de que há alguns anos eu descobri que gostava muito de cantar. Desde então experimentei muitas coisas, aulas de canto, de teoria musical, escolas onde eu pudesse entender um pouco melhor esse desejo. Ainda estou descobrindo onde cantar, o que cantar e como gosto de cantar. Não tenho todas essas respostas, mas sei que gosto de ter liberdade e de experimentar. Ambos eu pude realizar nesse projeto, experimentei muito, tonalidades, repertório, dias em que minha voz saía diferente do que eu esperava. Na verdade no canto estou sempre me surpreendendo com a minha própria voz, porque não é algo que você pode mentalizar. Mesmo depois de feito, sempre que ouço é diferente, a escuta também é sensível e varia de um dia pro outro. Tive sorte de conhecer o João Marcondes, que é uma pessoa que também gosta de experimentar e de ser livre, no sentido de não ter muitas regras sobre o que cabe e o que não num disco, ou numa paisagem musical. Acho que busco lugares na música em que eu possa “fluir” com espontaneidade, e é assim que eu consigo me divertir cantando e não sobrecarregar meus pensamentos a respeito de como serão os resultados, e o disco sem dúvida foi um lugar em que isso aconteceu, essa fluidez.

Você cresceu em uma casa em que a arte sempre se fez muito presente, escreve e canta desde criança. Como esse interesse pela música se manifestou? Houve um marco, um acontecimento específico?

Sim. Na verdade na adolescência e começo da juventude houve um momento em que eu parei de cantar. Na verdade foi uma época bem introspectiva, e em certo momento descobri que cantar me fazia bem, era aliviante, como se os sentimentos pudessem sair e ao mesmo tempo eu não tivesse que entender o que estava saindo, como na terapia por exemplo em que você precisa formular (o que também é bom, mas de outro jeito). Cantar era como deixar os sentimentos saírem falando a língua dos sentidos, e não a língua racional. E nessas horas eu cantava de qualquer jeito, não estava preocupada com a precisão das notas, era terapêutico mesmo. Desde que eu voltei a cantar quando estou sozinha, comecei a conseguir cantar às vezes com ou para outras pessoas. É como se você descobrisse um caminho, é possível que a sua voz saia, isso não foi natural, foi algo que eu descobri e me esforcei para. No começo era um fiozinho fraco de voz. Aos poucos esse caminho da voz para fora vai se fortalecendo. Hoje eu canto sozinha muito, alto, baixo, muito alto, fazendo faxina ou qualquer coisa. Eu nem penso, vem o desejo e eu atendo livremente. Não foi sempre assim na minha história, tem pessoas que sempre cantaram eu imagino. Pra mim é uma conquista. É como um pacto com a alma. É também uma lembrança dessa infância na qual eu era um ser cantante. Tive muita ajuda nesse processo, muita gente que gostava do meu timbre, da minha voz, e que expressava isso pra mim, isso foi importante também, me estimulava a continuar. Agora já não me importo tanto com o que os outros acham, não vou mais deixar de cantar.

Lembro de conversar com o seu pai à época da estreia de “O Real Resiste” (2020) e ele me falar sobre o seu debut, à época, acredito, em fase de produção. Houve incentivo por parte dele pra que você se lançasse como cantora?

Meu pai me apoia muito no que quer que eu decida fazer. Então, por exemplo, se me proponho a fazer um disco e conto pra ele, ele vai apoiar e, mais que isso, me estimular para que eu termine o que comecei. Mas isso não é só na música, por exemplo, estou num processo de terminar um livro de poesia, e ele também sempre pergunta como está indo. Acho que ele entende que terminar algo, e principalmente, deixar que esse algo chegue nas outras pessoas, é importante. É claro que isso é uma atitude que pode ser considerada parte da paternidade, mas o que vejo nele é mais do que isso, é um desejo genuíno de que a arte seja lançada no mundo, um gesto de amor, eu diria, com o público (ainda desconhecido) que essa arte vai alcançar. E nesse sentido eu imagino que isso não seja só com os filhos, mas com qualquer arte que o toque e que ele sinta que outras pessoas também merecem poder ser tocadas por aquilo. Daí voltamos um pouco para a paternidade, porque sendo pai sei que a minha arte vai tocar ele de um jeito específico.

Me chamou a atenção o fato de que você interpreta uma nova inédita de “Se essa rua fosse minha”, clássica composição de Mário Lago e Roberto Martins. A que se deve essa escolha para o repertório?

Queria cantar alguma música do meu universo infantil. Se essa rua fosse minha é uma música profunda, tem uma letra que é um poema simples sobre o amor, e pra mim também é sobre como não temos controle do amor, e de como somos inevitavelmente marcados pelo amor, e ao mesmo tempo de como destinamos boas intenções para aqueles que amamos. Também é sobre solidão nesses processos. Eu gosto muito da letra e de como ela casa com a melodia. No disco nós optamos por um arranjo que lembra um bloco de carnaval. Estou muito feliz com o resultado, porque me lembra um bloco singelo de carnaval, de rua, como um bloco passeando no meio da noite numa rua de pedrinhas de brilhantes. Na minha infância, em casa, sempre misturamos bastante músicas de carnaval com músicas infantis. Os dois temas habitam o mesmo lugar nas minhas memórias afetivas. Então, decidi misturar os dois.

Existe uma inspiração nítida em temas que circulam pela música popular, sinto que isso acontece até mesmo em termos sonoros por meio da escolha de determinados instrumentos. Qual a sua relação com esse nicho da MPB? O que mais gosta?

Realmente o que eu mais ouço é MPB. Sempre foi na verdade, apesar de na adolescência eu flertar muito também com Pink Floyd, The Doors, Johnny Cash, Leonard Cohen… Ouvia muito blues norte-americano também. Sempre gostei muito de ler as composições e essas, desses caras, são muito ricas, tem muita poesia ali. Assim como na MPB, isso sempre me interessou. Na adolescência também ouvi muito os discos do Caetano [Veloso] que estavam saindo na época, “Cê”, “Zii & Zie” e por último “Abraçaço”. “Recanto”, da Gal, que ele produziu e escreveu as letras, era outro. Pra mim sempre foi muito legal ouvir coisas que estavam sendo feitas no meu tempo, frescas. Também gostava do minimalismo desses discos, da composição de uma banda pequena e profunda. Ao mesmo tempo eu ouvia muitas coisas um pouco mais antigas também, Tom Jobim, Vinicius [de Moraes], a discografia enorme do Chico [Buarque], Nara Leão, Batatinha, Noel Rosa e outros. De uns tempos pra cá eu descobri a obra do Milton, que eu não ouvia na adolescência, mas depois que comecei não parei mais. A MPB é incrível, sempre existe algo a se descobrir.

Há um coro na faixa “Agua de estrellas”, que conta com Mariana Moreau, Gisela Moreau, Rosa Moreau Antunes, Dora Moreau Stroeter e Cora Moreau Schiller Tucker. Como foi ter essas pessoas queridas dividindo os vocais? Que significados você atribui a esse momento?

Essa faixa ganhou uma força absurda com esse coro de mulheres da família. Foi muito forte pra mim todas elas toparem e cantarem juntas. Foi lindo de ver, e pra mim é lindo de ouvir agora. É como se, nos nossos caminhos tão distintos, tivéssemos criado um ponto de encontro. É isso que essa faixa significa pra mim, esse ponto de encontro possível entre essas mulheres da mesma família, de diferentes gerações. Gravamos o coro na quarentena, num momento de muita cumplicidade também, porque estávamos quarentenando juntas em Ibiúna. Foi bem no começo da quarentena, e tinha aquela sensação bem presente de “o que vai ser do mundo e da nossa realidade agora?” e foi importante estarmos juntas nesse momento também. Fora isso, nossas mães (minha e da Josefina), a Mariana e a Gisela, também sempre apoiaram muito nossas criações artísticas, assim como nossas irmãs, a minha, a Rosa, e a dela, a Dora, que participam, são um apoio, uma amizade especial, enfim, irmãs, não há nada igual a uma relação de irmãs. Então tínhamos a relação de irmãs das nossas mães (que são irmãs claro), a nossa relação de primas, nossa relação de irmãs, tudo junto lá. E pra cereja do bolo temos a voz da filha da Josefina bebê participando, que trás uma terceira geração feminina para o coro.

A sua ligação com a literatura se reflete no álbum de várias maneiras, mas notei uma certa pungência na maneira de construir as narrativas, sempre com detalhes, emprego e expressão de sentimentos…

Sim, já me falaram isso da pungência dos detalhes. Uma vez uma amiga da minha mãe comparou a minha escrita com fazer um colar de miçangas, essa ação tão dedicada de escolher miçangas minúsculas e passar no nylon pra formar o colar e a combinação de cores e aspectos. Eu fazia muito colar de miçanga nas férias na Bahia quando era pequena. Já me disseram também que a minha escrita tem muitas imagens, como um sonho. Imagino que isso tudo também se aplique às composições. Acho que diz respeito a como eu sou também, eu presto atenção nos detalhes e na imensa quantidade de sentimentos que eu experimento na vida.

Você usa recursos que eu gosto muito, particularmente, que são a palavra falada, as sobreposições e as variações de timbre. Gosta de trabalhos mais experimentais? O que você ouviu durante a gravação do seu disco?

Gosto sim de trabalhos mais experimentais, apesar de ter citado coisas mais “clássicas” aqui. Gosto de ser surpreendida por um efeito ou um timbre. Gosto principalmente quando escuto algo e penso “nunca ouvi nada parecido com isso”, mas não pode ser somente isso, se não não é suficiente, tem que ser “nunca ouvi nada como isso, e isso aqui está me chamando, me tocando”. É estranho dizer isso, mas geralmente me apaixono mais por músicas do que por álbuns, pode ser geracional, então ouço as mesmas músicas várias vezes. Daí às vezes vou buscar o álbum. Na produção do disco eu lembro de ter ouvido o álbum “Milagre dos peixes (Ao vivo)” do Milton, e lembro um dia que o João pediu pra eu mostrar referências instrumentais do que eu gostava, e eu levei o álbum Ouro Negro, do Moacir Santos, e um cd que não sai do meu carro do Glenn Gould tocando Bach. Também mostrei pra ele aquela música Lilies of the Valley, que descobri na trilha sonora do filme que o Wim Wenders fez da Pina Bausch, e que eu amo.

Sinto que existe uma cobrança muito grande por parte do público e da própria imprensa quando um artista jovem, vindo de uma família de criadores já consagrados, faz sua estreia. Maria Rita é um exemplo clássico. Agora existe uma espécie de “sucessão” na majestosa família da música brasileira com filhos de Gil, Caetano, Chico fazendo música… Como enxerga esse movimento? Pra você é um privilégio ou acaba sendo uma responsabilidade maior?

É os dois, um privilégio e uma responsabilidade maior, porque já tem um público formado do meu pai de olho no que eu estou fazendo. Com certeza, ver filhos de outros músicos consagrados criando da sua própria maneira, pondo a cara no mundo, me ajuda muito e me dá forças. Na minha adolescência não tinham tantos músicos legais, filhos desses músicos, criando suas coisas. Isso está crescendo e eu acho ótimo. Acho muito bonito de ver como é possível transformar essa responsabilidade maior em privilégio, digamos assim. Acho que isso é um trabalho conjunto dos filhos e dos pais, dos filhos de crescer e dos pais de dar espaço para o crescimento. Acho bonito de acompanhar.

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