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música

Arnaldo Antunes canta amor, morte e balbúrdias reais em disco inédito

Arnaldo Antunes é um artesão da palavra e tem licença pra transitar entre as canções, a prosa e a poesia. Prestes a completar 60 anos – ele nasceu em 2 de setembro de 1960 – está sempre em busca de reflexão. Uma das mais recentes diz respeito à morte, rito de passagem iminente a todos nós, mas que para ele, pelo contrário, não é causa de terror. “O assunto está se tornando mais vivo pra mim com o passar dos anos”.

Essa proximidade com o tema é apenas um fragmento de suas novas criações, que transcendem qualquer preocupação pessoal com o fim. O Brasil, pensado por ele enquanto um conjunto de coisas, parece estar em transe, ao mesmo tempo em que é a terra que lhe serve um banquete de inspiração. Talvez por isso mesmo tenha destaque em “O Real Resiste”, seu 18º álbum de estúdio lançado nesta sexta-feira (7).

Não é só isso: além dessa narrativa de pesadelos e balbúrdias, existe um equilíbrio típico de Arnaldo. De repente, a vida brota por meio de músicas enxutas, singelas, que nos devolvem a crença de que o mundo ainda tem jeito. O foco das dez faixas está nas composições, que usam apenas o piano e instrumentos de corda como base pra falar de amor paterno, paixões de outras galáxias e dos dias preciosos que passou em uma aldeia indígena.

Enquanto prepara uma turnê em formato inédito, o cantor aponta mais uma vez o caminho: tomar a realidade como uma responsabilidade. “É a gente acreditar no que deve ser representado e valorizado em tempos tão hostis”. Sobre seus novos passos, seu processo criativo e o Brasil de Jair Bolsonaro, o poeta deu a seguinte entrevista por telefone:

Papelpop: “O Real Resiste” foi gravado no interior de SP em meio a uma paisagem que até eu, que particularmente não consigo viver longe da cidade grande, adoraria conhecer. Que impacto a natureza e esse ambiente tiveram no seu trabalho?

Arnaldo Antunes: Eu também tenho esse apego pela cidade, pelo ritmo das metrópoles, pela velocidade com que as informações circulam por São Paulo, mas acaba que estar num local como esse traz um contraponto, te permite estar mais contemplativo. Este é o segundo disco que gravo no sítio-estúdio Canto da Coruja, que é do Ricardo Prado [músico e colaborador] e você entra num estado de imersão musical muito profundo. Não há interrupções, por exemplo, de alguém que chega ou do telefone que eventualmente toca. Você grava, faz uma caminhada, vê os bichos e é muito prazeroso tudo isso porque te propicia um mergulho exclusivo, dedicado à música. O ambiente, muito inspirador. É a situação ideal pra gravar, tanto que levamos apenas uma semana.

Esse álbum traz uma sonoridade mais homogênea do que a do “RSTUVXZ”, que transita entre o rock e o samba. Estamos diante de uma proposta mais simples, com piano e instrumentos de cordas… como foi o seu trabalho de pesquisa sonora?

O disco mais recente, “RSTUVXZ” (2018), tinha ali como protótipo essa alternância de gêneros, eu passeava entre o samba e o rock, trazia o peso rítmico característico desses dois gêneros. Já nesse [“O Real Agora”], mudei muito porque queria me voltar pro formato da canção, de como ela é composta no violão. Então enxuguei muito. É um disco sem bateria, sem percussão, com pouca programação eletrônica e que foi gravado muitas vezes com todos os músicos tocando juntos… não tem o peso característico de uma banda que expressaria o rock. Na verdade, esses dois gêneros, entre outros, passeiam sim pelo disco, mas dentro de um conceito sonoro em que são insuficientes. “O Real Agora” é mais intimista, mais sereno e essa interpretação de sonoridade acaba sendo contaminada. Você canta com outro sabor.

Acho “Na Barriga do Vento” um dos momentos mais bonitos desse disco, lírica e sonoramente falando. Você faz um dueto com a Celeste, sua filha… 

Ah, foi uma delícia gravar com ela. Essa música tem vários parceiros na verdade, Pedro Baby, Carlinhos Brown, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa, porque compusemos nos bastidores da turnê com Os Tribalistas. Gravei no celular e acabei a letra algum tempo depois em casa. Todos curtiram, aprovaram o resultado final. “Na Barriga do Vento” fala sobre essa relação entre pais e filhos, eu particularmente tô vivendo esse momento em que os filhos cresceram, são adultos. A gente os cria, afinal, pra vê-los sendo autônomos, independentes e achando seu caminho, como a própria letra da música fala. A Celeste estuda música, gosta de cantar, começou a compor, pretende lançar seu próprio disco… eu resolvi convidá-la. Deu mais vida, um brilho especial ao projeto, ficou muito bonito.

As suas novas composições estão centradas em temas como amor, morte, política. A escolha desses temas foi intencional ou a escrita foi orgânica, de acordo com os acontecimentos recentes?

Foi natural, as letras que eu vinha compondo e que entraram neste álbum são recentes. A ideia de se fazer essa formação, na verdade, veio muito por causa do Cézar Mendes, meu parceiro musical e que assina a primeira e a última faixa do disco ao meu lado. São elas o fio condutor das demais. A única música que foge à regra é “Devagarinho”, que fiz nos anos 1980 e que a Illy gravou no ano retrasado. Em 2019 fizemos um remix juntos que ficou muito bacana e aí senti o desejo de fazer uma versão pessoal. São faixas criadas de ano e meio pra cá e que representam o leque de valores que eu prezo na cultura. A figura de João Gilberto, a natureza, a questão da morte, o amor vivido entre amantes de outra galáxia, o amor de pai pra filho, os indígenas… É um leque de coisas que são de certa forma o meu real. A faixa título, “O Real Resiste”, que é evidentemente mais política, combativa, fala sobre isso: a gente acreditar no que deve ser representado e valorizado em tempos tão hostis como os que estamos vivendo.

Quando está compondo é possível discernir entre o que será poesia, o que será canção? Ou não se faz isso?

Em geral eu sei. Já tenho um pouco impregnado isso do destino de uma criação, se é algo pra ser lido, se é uma letra de uma canção, se é algo que nasce com suporte visual pra se transformar em um objeto, um cartaz ou uma instalação. Em geral tenho essa consciência já no ato de feitura, mas existem muitas exceções, o que se tornou comum no decorrer do tempo. Tem coisas que faço como poema e quero abdicar, como é o caso dessa canção “Termo Morte”. Ela nasceu como poesia há dez anos e agora decidi mudar algumas coisas pra fazer as sessões de gravação, talvez porque o assunto morte esteja se tornando algo mais vivo pra mim com o passar da idade. Existe um anagrama entre as palavras “termo” e “morte” que acho muito interessante. É esse mesmo envolvimento com a palavra que une esses dois universos. Agora, especialmente, devo misturar um pouco mais com o show do show “O Real Resiste”, que estreia em março, porque é um formato que nunca fiz antes e em que estou acompanhado só de um instrumentista. Vitor Araujo me acompanha no piano, trago ainda alguns poemas musicados… vamos ver como essa mistura vai funcionar. Começo a ensaiar semana que vem. A Bethânia é uma que faz isso muito bem, né?

“O Real Resiste” faz uma crítica à realidade, que tem se mostrado um tanto moralista… Ontem, por exemplo, o Governo de Rondônia mandou recolher uma lista de livros por considerá-los inadequados. Isso me faz pensar em como a leitura sempre foi um forte agente de desestabilização do autoritarismo. Queria que você comentasse o papel da poesia, enquanto arte política, no rompimento desses discursos reacionários.

Eu acho que esse é um compromisso não é apenas da cultura, da música, da literatura ou da poesia em si. É um compromisso do cidadão dar um freio nessa escalada autoritária, defender os valores democráticos. É inconcebível que as pessoas normalizem coisas como a defesa das ditaduras e das torturas, a censura, a falta de convívio com as diferenças, o preconceito, a intolerância, os pedidos de fechamento do Superior Tribunal Federal nas ruas… isso tudo é um pesadelo. Espero das pessoas reais, de carne e osso e que respiram ar, que comem comida e que transam que prezem os valores democráticos, os direitos humanos, as convivências, a valorização do diálogo com as diferenças. Você não pode tratar um adversário político como um inimigo mortal. Aí, é claro, a cultura de certa forma acaba sendo porta-voz de uma parcela da sociedade. Os poemas, inevitavelmente, entram nesse conceito de expansão cultural de pensamento, mas é algo que precisamos ver como um todo. Esse “real” deve partir de qualquer um.

E o que você tem lido agora?

Li há pouco “Essa Gente”, do Chico [Buarque], que adorei. Como sempre um livro maravilhoso, costumo acompanhar, então logo que ele lança eu já vou atrás. Outro que eu amei também foi “Brasil, Construtor de Ruínas”, da Eliane Brum. Sou fã dela, leio sempre o que ela escreve no El País e acho que todos deveriam buscar essa obra porque é um retrato do Brasil. Li também “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak. Acho muito procedente esse título porque temos governantes no poder como Bolsonaro e Trump que tem uma espécie de descrença em relação a tudo que está ligado à crise do clima, há um descaso com a preservação do meio ambiente justo em um momento em que o colapso ambiental se torna algo irreversível. É uma coisa muito maluca e esse livro nos convida a ter ideias, a refletir sobre uma espécie de lado suicida da humanidade que se manifesta e quer acelerar a destruição das coisas. Ele diz que além de agir é preciso pensar.

Ainda há pouco comentamos obre os indígenas e há duas faixas desse novo trabalho que versam sobre eles. Há pouco tempo você fez uma visita ao Acre, mais precisamente à aldeia dos índios Iauanauás. O que você extraiu de mais rico dessa experiência?

Tudo. Foi um aprendizado pra vida sobre convivência, cultura, música, cuidados com a natureza. Fomos muito bem recebidos, os Iauanauás são muito amorosos e esse sentimento precisa muito cultivado, valorizado e preservado em detrimento da cultura do ódio. Digo isso não numa perspectiva combativa, mas no sentido de semear os afetos. Pra mim foi riquíssimo, as duas músicas que entraram no disco tem inspiração direta nesses dias de convivência. “Dia de Oca” veio como uma retribuição ao que eu tava recebendo da cultura indígena, dos dias na aldeia. Quando compus essa música pude cantar pra eles durante uma cerimônia, eles curtiram, foi muito bacana essa troca. E Linda India, já tinha essa melodia composta, mas acabei essa letra lá na Aldeia, pensando na contaminação da vida indígena, essa mutação que a vida indígena vem sofrendo através da fala das pessoas, foi muito inspirador aprender com eles de uma maneira transformadora, de uma maneira geral.

Agora uma provocação: o show de “O Real Resiste” estreia em março e promete ser bem diferente dos anteriores, mais intimista. Você disse estar interessado em resgatar as performances de poesia e me lembrei de uma fala da Patti Smith e ela adora declamar. Tanto que disse outro dia que se pudesse ficar com uma coisa só seria a literatura. Você, assim como ela, circula por várias áreas das artes. Conseguiria fazer essa escolha?

Eu não saberia responder (risos). Essas esferas são muito próximas pra mim, sabe? O que me levou a fazer canções foi o trato com a palavra cantada, enquanto o que me levou poesia foi a palavra escrita. Quando você entoa o poema você faz uma melodia com a voz. São coisas muito próximas, então existe uma grande intersecção aqui.

 

O Real Resiste” está disponível em todas as plataformas de streaming.

Fotos: Márcia Xavier

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